Marçal Grilo. “Sou um entusiasta das propinas”

Houve uma quebra no número de inscritos, perto de 44 mil, menos 12% do que no ano anterior. Como justifica esta queda? Vamos pagar a fatura mais tarde?
Acho que isto é o normal, acabou o regime da pandemia e não se pode acabar com os exames no final do Secundário, seria uma coisa completamente absurda e seria um retrocesso enorme. Isso é que pagaríamos caro daqui por uns tempos.
Os exames acabam por servir para fazer uma seleção?
Não é uma questão de seleção, é uma questão de qualidade. O acesso ao Ensino Superior tem de cumprir determinados critérios e também serve para que as pessoas que entram tenham alguma garantia e que apresentem qualidade suficiente para poderem aceder. No entanto, acho que os números não devem ser comparados com os de 2023 e de 2024, nem mesmo com os de 2022. Têm de ser comparados com os números registados antes da pandemia, porque o crescimento que houve foi manifestamente o resultado de um abrandamento na exigência de qualidade e sabe-se que a qualidade é fundamental. Recordo-me que, quando se fizeram os exames pela primeira vez, em 1996, foi um passo gigantesco. Não sei qual é o horror que se tem aos exames, sempre houve e existem em toda a parte. O exame é uma prova final de um curso, de um trajeto que se vai percorrendo e que obviamente é a forma de poder, por um lado, garantir um mínimo de qualidade, e por outro lado, termos uma ideia se os sistemas de avaliação estão a funcionar ou não.
Criou-se a ideia de que todos podiam iam para o Ensino Superior?
A ideia não é querermos que vão ou que não vão. Vão aqueles que devem ir.
O ministro da Educação salientou que ‘o acesso ao Ensino Superior é uma aspiração de muitos portugueses, mas não é o único percurso possível’…
É preciso olhar para isto com algum conhecimento e com algum distanciamento. Os americanos, no final da Segunda Guerra, quiseram fazer uma entrada maciça no Ensino Superior. Nessa altura, o Presidente Roosevelt, em 1944, fez uma coisa chamada G.I. Bill que era uma lei que funcionou e que teve um impacto enorme no Ensino Superior e na vida americana, em que todos, mas todos os soldados, todos os que prestaram serviço militar, quer na Europa, quer no Pacífico, no final da sua prestação tinham o direito a entrar numa instituição de Ensino Superior. O acesso não foi feito através de provas, mas através das condições de vida, porque muita gente não conseguiu ir para o Ensino Superior. Isso foi um movimento absolutamente extraordinário, porque a Segunda Guerra também foi uma coisa absolutamente extraordinária. Mas nós não temos uma situação dessas, não temos aqui nenhum facto que esteja a afetar a juventude portuguesa que leve a tomarmos uma decisão dessas. Precisamos de gente qualificada, precisamos de gente muito qualificada, precisamos de ter um Ensino Superior que seja capaz de competir com os sistemas que existem pela Europa, pelo Mundo, mas pela Europa sobretudo, mas ter um sistema que seja diversificado, que tenha cursos de vários tipos como já aqueles que temos: os cursos mais curtos, os cursos mais longos, os politécnicos, os universitários, os mestrados, os doutoramentos, etc. O sistema diversificou-se muito a partir dos anos 80 e isso é uma coisa boa para responder às necessidades que o país tem. Portanto, acho que é normal o que está a acontecer e não vejo que isto tenha nada absolutamente extraordinário.
Mas há quem aponte a falta de apoios e o preço do alojamento como entraves para o acesso ao Ensino Superior.
Isso é outra história e não tem nada a ver com exames, nem tem a ver com qualidade, isso tem a ver com as condições. E aí acho que há um grande esforço a fazer em várias áreas, nomeadamente as condições de que dispõe a ação social escolar, que é absolutamente essencial. É essencialíssimo ter condições para ir apoiando o maior número de estudantes que não têm condições económicas para poderem frequentar o Ensino Superior.
Há quem tenha bons resultados nos exames, mas depois não tem condições financeiras para continuar.
Como também há muitos que entram e que têm dificuldades financeiras, mas depois têm apoios e conseguem fazer os seus cursos. Temos sempre a tendência para exagerar as coisas todas, não é bem verdade aquilo que se diz de que as pessoas com menos recursos não conseguem. Alguns conseguem, há muitos que não conseguem, mas é a esses que conseguem que temos de prestar maior atenção. Também temos de prestar atenção àqueles que ficam de fora por não terem condições para estudar, porque não conseguem um quarto ou porque não têm dinheiro para viver ou porque não têm dinheiro para os transportes e não têm dinheiro para uma série de coisas. Aí é que o esforço do Estado deve ser muito grande, compensando o mérito que os estudantes têm e apoiando-os. E a questão dos alojamentos é muito importante. Deviam devem ser dadas às universidades condições financeiras para poderem disponibilizar quartos, ou seja, acesso a quartos que sejam públicos em edifícios que sejam da própria universidade, por exemplo, ou contratando. Há muitas maneiras de poder alargar o campo de oferta para que os miúdos tenham condições para poder viver, porque o que se passa designadamente em algumas cidades – não tenho dados sobre isto e não gosto de falar do cor – é que os preços dos quartos em Lisboa tornaram-se insuportáveis, porque há muito poucos. E, se a procura é grande e a oferta é pequena, é evidente que os preços vão por aí acima. Isso é muito negativo para as famílias e para os próprios estudantes que não conseguem suportar. Admito que haja estudantes que se tenham candidatado, que tenham entrado e que depois não tenham depois condições para poderem preencher as vagas.
Em relação ao interior, como vê a queda de número de inscritos?
Mais grave e que deve merecer alguma preocupação é que há cursos que são do maior interesse para o país em formar jovens e que não têm grande procura. Por exemplo, a falta de procura nas Engenharias nos politécnicos é preocupante. Há imensas vagas que não foram preenchidas nas áreas das Engenharias e mesmo da própria Informática, o que me parece muito negativo. O país precisa de gente que faça, que projete, que construa em áreas sensíveis, como é a das Engenharias. O mesmo acontece com a área da Agricultura, o que mostra que há uma crise no setor agrícola. E os cursos, sobretudo do interior, têm muitas vagas sobrantes e é aí que vale a pena fazer alguma pedagogia nessa matéria. O que é que aconteceu, por exemplo, com as Engenharias, na crise de 2007-2008? O setor de construção parou e passou a haver muitas vagas em toda a parte de Engenharia Civil. Isso é grave, porque a Engenharia Civil não é só para construir casas, é para muitas outras coisas. Os engenheiros civis têm responsabilidades em muitíssimas áreas, na manutenção, nos caminhos de ferro, nas pontes, tudo o que sejam obras de arte no sentido da construção.
E como vê a questão do descongelamento das propinas?
Acho muito bem, desde que isso seja compensado com uma ação social escolar muito mais forte do que aquela que temos. O debate há 30 anos era exatamente este, o problema não são as propinas, o problema é da ação social escolar para que ninguém fique para trás, para que ninguém diga que não entra no Ensino Superior porque não consegue pagar as propinas. Isto é que não pode acontecer. O corte que houve do valor das propinas foi inteiramente gratuita e demagógica, porque não é o valor das propinas que impede as pessoas de estudar, o que impede as pessoas de estudar são as condições que os estudantes têm, seja, em matéria de transportes ou de alojamento ou das refeições ou dos livros ou do computador. A ação social escolar tem uma importância muito grande num país que tem os vencimentos que tem. Os vencimentos são muito baixos. As famílias fazem, por vezes, grandes esforços para porem os seus filhos a estudar. Muitas vezes, têm de pôr os seus filhos a estudar fora de casa. Uma das razões porque alguns institutos do interior têm muitos estudantes é porque, primeiro, o nível de vida é mais barato, não é tão dispendioso, por outro, estão mais próximos. A existência destes institutos é muito importante, pois é a maneira de segurar a população do país em zonas do interior. Se pegarmos em Bragança, Guarda, Castelo Branco, Portalegre, Tomar, Évora e Beja, por exemplo, são cidades que devem muito à existência do Ensino Superior. Uma coisa que só existe a partir de 1973. Até 1973, nenhuma destas cidades tinha Ensino Superior e isso deu um impulso enorme a cidades como estas. Por exemplo, a cidade de Castelo Branco tem cerca de 35 mil habitantes, mas tem um instituto que é capaz de ter cinco ou seis ou sete mil estudantes. É muito importante pensar que o Ensino Superior também é uma forma de dinamizar estas zonas do interior. Mas, voltando à sua questão das propinas, a questão não é saber se são mais elevadas ou menos elevadas é se o Estado está disponível para ter um sistema de ações sociais que compense isso e faça com que nenhum estudante, repito, deixe de estudar por razões económicas e financeiras. Essa é que deve ser a grande preocupação.
Estamos a falar de um aumento anual de 13 euros.
O aumento é simbólico, mas acaba por ter um simbolismo grande, no sentido de que, na cabeça de algumas pessoas, sobretudo de algumas correntes políticas, é que as propinas deviam desaparecer. As propinas não devem desaparecer, as propinas devem existir, o que se adquire com o Ensino Superior faz com que cada estudante fique apetrechado e é algo pode que levar para onde quiser. Pode-se formar aqui em Engenharia, ou em Medicina, ou em Direito, ou em Informática, ou em Aeronáutica, seja o que for, e depois pode levar esse conhecimento e essa capacidade acrescida que ganha para o Canadá, para a Alemanha, para os Estados Unidos, para o Brasil, para onde quiser. Há aí um ganho individual, há um ganho da sociedade. Sou um entusiasta das propinas, penso que continua a ter a mesma validade que teve há 30 anos quando foram criadas na modalidade que existem hoje. O que existiu durante dois anos é que foi uma coisa um bocadinho fora de propósito, porque estava indexado ao IRS e não funcionava, era tecnicamente errado. O Governo decidiu aumentar 13 euros, passando de 697 para 710 euros, mas o problema não é o subir muito ou subir pouco, é ter deixado descer, que era o que vinha a acontecer, porque as propinas tinham sido cortadas talvez duas ou três vezes durante o primeiro Governo de António Costa, e aliás, reduzidas na altura contra a vontade do próprio ministro da Ciência.
As universidades também precisam de financiamento.
Não é só precisar de financiamento, há aqui uma questão que é conceptual. O Ensino Superior não é gratuito. A Constituição diz que o ensino deve ser tendencialmente gratuito e o Tribunal Constitucional, em 1998, pronunciou-se sobre isso e disse que não era inconstitucional, que não ia contra a norma da Constituição, o facto de se pagar o Ensino Superior. Na altura, o Ensino Superior tinha um custo que era igual ao do salário mínimo, se a memória não falha. E penso que isso era correto, como é correto hoje.
O ministro diz que seria regressivo reduzir as propinas porque iria colocar a sociedade a pagar o ensino dos que tiveram privilégio de o frequentar.
Essa argumentação tem 30 anos de vida. Não tem nada de novo. Há 30 anos que utilizo essa argumentação.
Jornal Sol